003 - O Lobo e os Sete Cabritinhos
O passado que nos fascina e assombra
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a rua daqui de casa há quatro crianças: minha filha de quase 2 anos de idade, uma vizinha um mês mais velha e seu irmão de uns 9 anos, e uma menina de 4 anos. As crianças mais velhas gostam de vir aqui em casa para que eu leia livros ilustrados ou para assistir animações. Eu nunca coloco as Galinhas Pintadinhas e os Bob Zooms, sempre coloco animações antigas. Normalmente em preto & branco.
Como este curta em stop motion de 1939, dirigido por Ferdinand Diehl, adaptando a história de contos de fadas O Lobo e os Sete Cabritinhos dos irmãos Grimm. Ferdinand é um animador praticamente desconhecido hoje em dia. Eu mesmo só conheço esta animação, mas ela tem alma1. E a gente acredita logo que aqueles bonecos rudes, mas cheios de personalidade, estão vivos. E ela é um pouco2 perturbadora, então eu perguntei para o menino de 9 anos3 se ele tinha ficado com medo. A resposta foi:
— Uai, quando a gente vê a cabra não tem como não sentir medo, e depois foi pior; olha, eu fiquei com medo o tempo todo, mas eu queria ver o que ia acontecer.
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Uns dias atrás eu estava caminhando pelo Vale da Sombra da Morte e vi um vídeo que me deixou incomodado. Nele uma pessoa, que imagino ser a dona de uma editora, falava que tal editora foi a primeira a trazer contos de fadas de diferentes países para o Brasil.
Nada contra a editora, que parece trazer livros muito interessantes para cá. Eu nunca li nenhum livro dela, mas vários já despertaram meu interesse. Já até dei um livro dela de presente. O meu problema foi com o apagamento. O mundo não começou ontem. Muitas editoras trouxeram contos de fadas de outros países para o Brasil, e até falarei da minha preferida depois. Os livros lançados antes podem ter até mudado algumas vidas.
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Contos de fadas são complicados.
Boa parte deles nem sequer tem fadas — nem as fadas madrinhas nem as fadas más.4
Contos de fadas são histórias folclóricas curtas. Alguns contos de fadas são como criaturas vivas: foram sobrevivendo, mudando, se reproduzindo. Contos de fadas muito parecidos presentes em culturas diferentes normalmente representam amizade e comércio entre povos: como são contados para crianças pequenas, eles indicam a presença de relacionamentos entre pessoas de culturas diferentes que geraram prole e criaram as crianças juntos. É como o conto de fadas chinês “O peixe e Yack, o Zarolho” e o conto de fadas russo “A Recompensa Justa”: ambos os países fazem fronteira e tem a Mongólia como região entre eles (além da Manchúria…), então não é de se espantar as similaridades.
A ideia de “versão original” de contos de fada é, no geral, falsa. Algumas histórias têm autoria conhecida: Pinóquio possui até um fada, um luxo para os contos de fadas, mas é um livro Carlo Collodi em 1883. Não existe uma versão original da Chapeuzinho Vermelho, toda repleta de metáforas sexuais, que foi sendo lapidada pelo tempo. 5Existem versões da Chapeuzinho Vermelho que coexistiam, que eram contadas em situações e locais diferentes.6
Há até um modo de catalogar contos de fadas: o sistema de classificação de Aarne-Thompson-Uther (ATU). Nele, as histórias ganham um número que agrupa variações da mesma história. Isso facilita comparações e análises. Chapeuzinho Vermelho e histórias similares, por exemplo, estão classificada em ATU 333.
Quatro contos (ATU 328, mais conhecido por João e o Pé de Feijão; ATU 330, mais conhecido por O Ferreiro e o Diabo; ATU 402, mais conhecido por As Três Penas e ATU 554, mais conhecido por A Serpente Branca) são velhos o bastante a ponto de terem sido contados, pelo menos, na língua protoindo-europeia (PIE).
A língua protoindo-europeia (PIE) era falada há cerca de 5000 anos atrás pelos indo-europeus. Essa língua é uma ancestral comum de grego, latim, celta, sânscrito, línguas eslavas, entre outras. Não é que histórias similares a João e o Pé de Feijão eram contadas em sânscrito ou latim, é que histórias similares a João e o Pé de Feijão eram contadas antes de sânscrito ou latim sequer existirem.
E continuaram vivas por 5000 anos até que surgiu um grande problema: a escrita.
Ou, sendo um pouco mais preciso, o problema é a invenção da prensa.
Ou, sendo um pouquinho mais preciso ainda, o problema é a invenção da prensa ocidental. Johannes Gutenberg era um cara muito esperto, mas foi precedido em uns 1000 anos pelos chineses.
A prensa permitia que livros fossem produzidos em grandes quantidades. Isso fez com que certas histórias, que sobreviviam na mente das pessoas, fossem aprisionadas em letras como estas que você lê agora. E, aprisionadas, elas de certa forma começaram a morrer. Pararam de ter as características de criaturas vivas: pararam de mudar e de se reproduzir in natura. Deixaram de ser de todos e viraram propriedades de certas pessoas: Grimm, Perrault, Andersen e dos que vieram depois deles, criando suas versões diferentes e com copyright. Agora havia uma versão “certa” e que não era mais a que você ouviu da sua mãe, era a que estava no livro.
Mas a prensa eternizou estas histórias, embora em poucas versões. Permitiu que culturas muito distantes as conhecessem mesmo sem a necessidade de relacionamentos e prole e tudo mais. E a prensa nos trouxe ilustradores! As ilustrações de Contos de Fadas são antigas e rivalizam com ilustrações religiosas em termo de volume e qualidade das ilustrações. Isso culminou na chamada Era de Ouro dos Livros Infantis, que aconteceu no meio do Século XIX. Havia mais pessoas alfabetizadas, métodos melhores de se produzir livros, e os livros ficaram mais baratos. O resultado foram livros incríveis.
Alguns dos ilustradores e ilustradoras de contos de fadas que mais gosto:
Ilustração de Eugen Napoleon Neureuther para Cinderela (1847). Caso queira ver com detalhes, clique aqui. Vale a pena. É o conto inteiro em uma imagem só.
Ilustração de Gustave Doré para Contos de Fadas de Perrault (1867), história da Chapeuzinho Vermelho
Ilustração de Arthur Rackham para Contos de Fadas dos Irmãos Grimm - Ilustrados por Arthur Rackham (1909), história dA Branca de Neve.
Ilustração de Kay Nielsen para A Leste do Sol e a Oeste da Lua (1914), história de mesmo nome. Este conto é muito famoso no oriente, é até o nome de um livro do Haruki Murakami, mas é pouco conhecido por aqui.
Ilustração de John Bauer para A Princesa e os Trolls (1913), história homônima. Ele é um dos meus ilustradores favoritos e foi uma influência fortíssima em outros ilustradores magníficos como Kay Nielsen e Brian Froud.
Vou parar por aqui porque eu poderia citar dezenas de ilustradores e escrever, sem precisar sequer pesquisar, vários textos sobre os meus favoritos. Recomendo muito o canal do YouTube do Pete Beard para quem quiser conhecer mais ilustradores, suas vidas e suas belas obras. Ou caso queira só deixar uma voz relaxante falando de fundo enquanto você vê belas imagens.
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Depois dos livros, outra tecnologia surgiu e mudou os contos de fadas para sempre: o cinema.
Em especial, as animações.
Em especial, as animações da Disney.
A Disney precisava de histórias em domínio público para adaptar sem pagar nada a ninguém, histórias que fossem boas e que crianças gostassem. Os contos de fada eram a escolha perfeita. A empresa foi fazendo curtas, testando tecnologias e se preparando para seu primeiro filme de animação de longa-metragem, a animação que mudou o mundo: Branca de Neve e os Sete Anões.
O filme era o conto de fadas que todos conheciam, mas com elementos novos o bastante para que a Disney tivesse o copyright de obra derivada em coisas como as músicas ou o nome dos anões. E o filme foi um sucesso assombroso sucedido por muitos e muitos outros e que serviu de base para o domínio midiático que a Disney mantém até hoje.
Só que na época de A Branca de Neve e os Sete Anões, você assistia a um filme ou curta no cinema e era isso. Acabou. Depois, uma nova tecnologia levou os filmes para a sua casa: a TV. Algum tempo depois, vieram meios de assistir as obras em casa quando você quisesse: fitas VHS e laserdiscs e DVDs e blurays. Por fim, as telas ficaram portáteis e chegou a internet, o que nos permitiu assistir aos filmes em qualquer lugar em que nossos celulares tivessem sinal.
As animações foram sendo assistidas inúmeras vezes por todas as gerações. Provaram-se tão populares que se tornaram a versão “correta” das histórias, a versão que todos conhecem e a versão a qual nos referimos ao falar com outras pessoas. Acabam sendo mais conhecidas que as versões em livros e, creio eu, que as versões orais. Em alguns casos, as histórias são próximas de suas versões mais famosas nos livros. Em outros, são totalmente diferentes. Enrolados sequer usa o título Rapunzel e Frozen é tão diferente de A Rainha da Neve que a relação entre as duas histórias parece mais uma curiosidade do que algo que poderia ser chamado de adaptação.
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Contos de fadas são complicados.
Talvez o conto de fadas mais famoso seja Chapeuzinho Vermelho. É uma história maravilhosa para se contar para crianças pequenas, especialmente se você é um homem barbudo e peludo como eu: sou perfeito para ser o lobo e o caçador e a criança entende que ela é a chapeuzinho. Apesar da fama da história, não há um filme de animação famoso que a adapte. Há um filme relativamente famoso que utiliza os mesmos personagens, mas que não adapta a mesma história. E que, por mais louco que seja, está mais próximo de Rashomon do que de um conto de fadas.
Imagino que a violência seja o maior impedimento para a adaptação: é uma história onde um lobo devora a vovozinha (e a Chapeuzinho, na versão dos Grimm), é morto com um tiro pelo caçador (ou depois, com pedras colocadas na sua barriga, na versão dos Grimm — a história precede a existência de armas de fogo) e tem sua barriga aberta para retirar a vovozinha (e a Chapeuzinho! Ainda vivas!) lá de dentro. Talvez fique um pouco grotesco demais ao ser adaptado visualmente.
No curta que compartilhei acima os cabritinhos são, quase todos, devorados. O lobo tem a barriga aberta e costurada. Ele morre afogado depois. O preto & branco, os ângulos e os bonecos ajudam a suavizar as coisas, mas não é um tipo de animação que imagino sendo feita hoje em dia.
João e Maria é outro conto famosíssimo e sem adaptações relevantes. É um dos muitos contos de fadas histórias com uma protagonista feminina que salva o dia e que está muito dentro do que é valorizado no nosso zeitgeist, mas há um pequeno problema… duas crianças alemãs matando uma idosa queimada em um forno não é algo muito legal, ainda mais depois de 1945 7.
Ainda assim, ambas as histórias sobrevivem. Nós não a vemos como particularmente violentas ou grotescas porque estamos acostumados com elas. Quando as adaptamos para uma mídia mais visual, os elementos mais grotescos saltam aos olhos.
Ao mesmo tempo, quando ouve “contos de fadas”, a maioria das pessoas vai pensar em uma história sanitizada para nossas sensibilidades modernas, algo como os filmes da Disney. De preferência com uma moça muito bonita e que termina muito rica (normalmente através de um casamento com algum príncipe o que fará da moça muito bonita uma princesa). E, verdade seja dita, algumas das histórias mais famosas dos contos de fadas são assim, mas elas são uma minoria.
E o que fazer com as outras histórias? O que fazer com histórias cheia das fobias e -ismos que tanto evitamos conforme nossa sociedade progride para ser mais igualitária? Histórias cheias de violência? Histórias cheias de morais dúbias ou terríveis ou amorais?
Quem compra um livro esperando Cinderelas vai reagir como a um O Judeu entre os Espinhos? A um O Junípero?
Qual é o espaço nas livrarias para livros que, sejamos sinceros, têm crianças como seu público-alvo, mas são ao mesmo tempo extremamente anacrônicos, retratando um mundo de muitos séculos (milênios!) atrás com suas morais igualmente anacrônicas?
Publicar contos de fadas deve ser muito complicado.
Fico feliz que muitas editoras tenham feito isso. A minha preferida foi a Editora Landy, que fechou (ou faliu…) muitos anos atrás. Eu a conheci por acaso, na adolescência, quando um dia encontrei, na biblioteca da minha cidade, os livros chamado Nós Acreditamos em Duendes e Outros Seres Encantados Volumes 1 e 2. O título não só não me atraiu como me afastou: eu sou a pessoa menos new age possível. Eu adoro histórias com magia e fantasia, mas não preciso acreditar nelas para amá-las profundamente. Por sorte a capa me atraiu e eu peguei o livro, li uma página e fiquei fascinado. Eu não sabia na época, mas era uma tradução de Fairy and Folk Tales of the Irish Peasantry, um compilado de contos de fadas e contos populares irlandeses feito por William Butler Yeats, o maior poeta da língua inglesa. Há ali contos coletados por Lady Jane Wilde, escritora e mãe de um certo Wilde muito famoso. Reli o livro muitas e muitas vezes, em inglês e em português. Muitos anos depois eu li este livro, em inglês, deitado na grama de um parque em Dublin. Foi uma experiência salutar.
A editora Landy lançou vários livros, sob o título de Contos de Fadas [Gentílico] ou Contos Populares [Gentílico], com contos de fadas de diversos países. A tradução é, até onde consigo perceber, muito boa. Há livros com histórias indianas, celtas, irlandesas, chinesas e portuguesas. Talvez haja mais, mas não encontrei nenhum catálogo completo. A editora fechou há tempos, e eu vou comprando o material online, em sebos e de vendedores particulares. Com os vários desastres que acometeram o Estante Virtual, eu descobri que os melhores lugares para se comprar livros fora de catálogo online são Shopee e Mercado Livre.
Já para quem quer ir atrás dos Irmãos Grimm, recomendo Contos maravilhosos infantis e domésticos, da Editora 34. Como o título demonstra, é uma edição com uma tradução focada nas histórias originalmente publicadas pelos irmãos, e possui todos os contos. Não há ilustrações, mas é um belo livro mesmo assim.
Até o design da capa lembra a Alemanha, tanto nas cores das bandeiras quanto na tipografia e composição características do movimento artístico Bauhaus.
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Normalmente eu terminaria por aqui, mas vou quebrar o padrão (de duas edições) e adicionar mais uma animação. Meu curta de animação preferido, e que é uma adaptação de um conto de fadas. Ou, melhor dizendo, que usa um conto de fadas como desculpa: Branca de Neve não tem um dragão, muito menos o fantasma do Cab Calloway dançando. A história do curta não faz nenhum sentido, o que o deixa ainda melhor: Betty Boop in Snow White, de 1933, não é sobre lógica, é sobre estilo. É o ápice do Estúdio Fleischer.
Abração e até a próxima.
Eu sempre quis adicionar notas de rodapé aos meus textos, me faz sentir profissional. Animação vem do latim anima, que significa alma. O animador dá alma a desenhos, bonecos ou modelos 3D. É, de certa forma, um deus criando vida e um mundo e, se der sorte e tiver um bom emprego, descansando no sétimo dia.
Muito perturbadoras, se você for a minha companheira.
Por que não perguntei para a menina de 4 anos de idade? Porque ela, ao contrário do menino, não pareceu ter medo em momento alguém. Alguns medos e desconfortos precisam de certa idade para desabrochar.
Quando criança, eu me perguntava qual a diferença entre uma bruxa e uma fada má. Cheguei à conclusão que era uma questão estética.
Eu tenho uma birra particular de quem fala de versões “originais” das histórias dos contos de fada, em especial se são versões com sexo ou violência. Se você não vê a violência, o canibalismo, etc você só não está prestando atenção, e as histórias existem além desses elementos.
Chapeuzinho Vermelho deve ser o conto de fadas campeão de análises preguiçosas e profundamente rasas e equivocadas. As versões de contos de fadas comentados pela Maria Tatar costumam ser muito boas.
Eu não sei se Ferdinand Diehl, o diretor da animação stop motion acima, era nazista. O curta saiu na Alemanha nazista, então é bem provável que sim, mas não achei muitas informações sobre ele. Nem todo alemão da época era nazista, claro. Lotte Reiniger, diretora do longa-metragem de animação mais antigo sobrevivente, era vocalmente contra o nazismo e foi obrigada a trabalhar para o regime. As histórias que cito aqui existem séculos, milênios antes do regime nazista, mas ganham novos sentidos conforme o mundo gera mais sentidos para elas.
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